Como muitas pessoas que estarão lendo isto talvez não sejam, como nós também não somos, leitores costumeiros da revista VEJA, possivelmente não terão tomado conta de imediato de uma recente reportagem publicada entre as páginas 72 e 87 do número 33 da edição 2074 correspondente a 20 de agosto de
Não é o caso na maioria das salas de aula. Muitos professores brasileiros se encantam com personagens que em classe mereceriam um tratamento mais crítico, como o guerrilheiro argentino Che Guevara (...) Ou idolatram personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização. Entre os professores brasileiros ouvidos na pesquisa, Freire goleia o físico teórico Albert Einstein, talvez o maior gênio da humanidade. Acreditamos que talvez um encargo pesado a pessoas que precisam ler e pesquisar depressa demais, sugerir às autoras da reportagem a leitura de pelos menos três livros de Paulo Freire: Pedagogia do oprimido, Pedagogia da esperança, e Pedagogia da autonomia. Estes livros e outros foram traduzidos para dezenas de línguas e costumam ser bastante mais lidos em nações e entre educadores dos paises centrais da "civilização ocidental" e do mundo capitalista, a começar pelos Estados Unidos, do que aqui mesmo no Brasil. Uma leitura destes e de outros livros, mesmo que apenas entre notas de rodapé e as bibliografias ao final, revelaria um pensador e educador cuja principal virtude foi sua atitude dialógica e aberta à diferença, a começar pelos autores que leu e a terminar pelo que escreveu e disse ao longo de toda a sua vida. Acreditamos também que talvez seja uma outra tarefa espinhosa sugerir a esses jornalistas e a quem neles creia, o realizarem um levantamento completo das obras, escritas pelos mais diferentes educadores de várias escolhas teóricas e pedagógicas e de diferentes nações e continentes, a respeito das idéias de Paulo Freire. Afinal, a menos que estejamos vivendo em um mundo mais alucinado do ele que nos parece, cremos que um educador brasileiro honrosamente convidado a ser Doutor Honoris Causa de quarenta e nove universidades espalhados por todos os continentes, não conseguiria chegar a tanto, enganando tantas pessoas cuja credibilidade é, na maior parte dos casos, internacionalmente reconhecida. Eles – bem menos do que quem assina a apressada reportagem - não se deixariam enganar durante tantos anos por um "autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização" . De igual maneira, creditar a favorável porcentagem de identificação de professores brasileiros com Paulo Freire, a uma ilusão ideológica igualmente rasteira e acrítica às suas idéias pedagógicas, equivale a uma postura de maldoso desrespeito a profissonais da educação cujas condições cotidianas de formação e de trabalho, estas sim, causariam espanto e desaponto entre educadores de outras nações da "civilização ocidental". Se a leitura atenta de algumas obras de Paulo Freire, ou a pesquisa – mesmo apressada – dos estudos que a mais de cinqüenta anos procuram desde todos os cantos do mundo pensar e colocar em prática a sua pedagogia, talvez represente uma dificuldade insuperável para as autoras da reportagem, cremos ue com um esforço bastante menor elas poderiam ler algumas páginas de uma revista que facilmente encontrariam em algum andar do edifício da mesma Editora Abril. Ela se chama Nova Escola. Seu subtítulo sugestivo é: a revista de quem educa, e a edição especial n. 19 de julho de 2008, dedica-se a apresentar "41 grandes pensadores – educadores que fizeram história, da Grécia antiga aos dias de hoje"[1]. A longa – e ainda assim bastante incompleta relação de Nova Escola, começa com Sócrates, condenado a beber a cicuta sob A acusação de corromper a juventude – algo não muito diverso do que os jornalistas de VEJA insinuam a respeito dos educadores "de esquerda" de ontem e hoje – e de não crer nos deuses gregos de Atenas. E ela conclui com Howard Gardner, um psicólogo norte-americano que certamente haveria de ser se sentir bastante mais à vontade entre educadores humanistas críticos – como ele mesmo – do que entre aqueles que defendem uma educação inocentemente neutra. Entre os quarenta e um pensadores do dilema do ser humano, da sociedade e da educação, encontramos três brasileiros. Acompanhados com os seus qualificadores no sub-título do índice, ele são: Anísio Teixeira – o inventor da escola pública no Brasil; Florestan Fernandes – um militante do ensino democrático, e Paulo Freire – o mentor da educação para a consciência. São reconhecidamente todos eles críticos da sociedade brasileira e a nenhum deles haveria de se reconhecer como um pensador "de centro" ou "de direita", ou um educador isento de uma postura ideológica em favor de uma educação humanista, de qualidade, democrática e essencialmente crítica, algo que a reportagem, ilusória ou maldosamente confunde com "doutrinária" . O educador Paulo Freire pode ser encontrado entre as páginas 110 e 112, logo a seguir de Hannah Arendt, citada pelas autoras da reportagem de VEJA, e de Florestan Fernandes, e logo antes de Edgar Morin. Uma vez mais, ei-lo em boa companhia. Embora originadas de uma mesma empresa de mídia, eis que Escola Nova reserva a Paulo Freire uma imagem provavelmente oposta ao retrato-falado
Editora Abril, acompanhadas de uma passagem de Paulo Freire, que entre o seu pensamento e o de um oportunista doutrinador, existe uma considerável distancia. Ao contrário, toda a sua pedagogia destina-se a transformara a doutrinação em diálogo, a passividade em participação ativa, a inocência neutra em crítica política (no bom sentido original da palavra: co-responsabilidade da gestão social da polis, o "lugar onde vivemos as nossas vidas"), e a capacitação instrumental destinada à subserviência competente no mundo dos negócios, pela formação consciente destinada a uma presença criativa na transformação da própria sociedade. Prossegue a mesma revista, como se adivinhasse o que VEJA viria a publicar cerca de um mês mais tarde. No conjunto do pensamento de Paulo Freire encontra-se a idéia de que tudo está em permanente transformação e interação. Por isso, não há futuro a priori, como ele gostava de repetir no fim da vida, como crítica aos intelectuais de esquerda que consideravam a emancipação das classes desfavorecidas como uma inevitabilidade histórica. Esse ponto de vista implica a concepção do ser humano como "histórico e inacabado" e conseqüentemente sempre pronto a aprender. No caso particular dos professores, isso se reflete na necessidade de formação rigorosa e permanente. Freire dizia, numa frase famosa, que "o mundo não é, o mundo está sendo" (NOVA ESCOLA, pg. 112). Dificilmente um tal "pensamento" poderia fundamentar uma postura de doutrinação e de inculcação de idéias e de valores. Na verdade, em direção oposta ao que a reportagem de VEJA pretende que seja um exercício docente de doutrinação de crianças e de jovens, como a maioria de nossas e nossos professores estivesse dedicada a menos ensinar do que a doutrinar os seus alunos, tudo o que educadores humanistas, herdeiros ou não das idéias e propostas de Paulo Freire, pretendem, é estabelecer condições docentes para que um ensino instrumental, funcional e apenas capacitador de competências, venha a ser uma educação formadora de pessoas críticas, reflexivas, ativas e participantes da vida de suas sociedades. A caricatura apresentada na revista VEJA e o retrato desenhado
Uma educação que para eles vale ainda como formação integral da pessoa humana. A mesma que a maioria dos que defendem a neutralidade do trabalho do educador prefere deixar a cargo daqueles que, passo a passo, tomam posse da educação brasileira. Os mesmos sócios dos que, reunidos em uma lastimável não tão distante Assembléia Geral da Organização Mundial do Comércio decretaram que previdência social, saúde e educação não valem mais como um direito humano, mas como uma mercadoria entre outras tantas. Talvez em nome de uma liberdade que não serve mais do que a indivíduos preocupados apenas com suas "carreiras" e a sua (cada vê mais difícil, cada vez mais socialmente seletiva) "trajetória de sucesso", VEJA apresenta como uma conquista de uma sociedade emancipada estes dados e comentários. A pesquisa realizada pela CNT/Sensus e publicada nesta VEJA um verdadeiro divisor de águas na história da discussão educacional brasileira. Porque aqui pela primeira vez se perguntou à sociedade brasileira – os alunos da escola pública e seus pais – qual é o tipo de ensino que ela quer. E a resposta foi clara. E claramente antagônica ao sentido de missão e às práticas dos professores: 70% dos alunos das escolas públicas acham que a função da escola é "preparar para o futuro" ou "ensinar as matérias". Só 28% defendem a "formação do cidadão". Alguém vai dizer: mas os alunos são demasiado jovens e não sabem o que querem. OK. Mas seus pais estão do mesmo lado: uma maioria de 56% espera que a escola "ensine as matérias" e dê formação profissional a seus filhos" (VEJA, pg. 86). Eis o ideal da Assembléia Geral da OMS realizado afinal. Eis um desejo de que a educação abra mão de ser formação e se reduza a ser uma instrumental e "material" capacitação. Estamos entre dois dilemas. Se a pesquisa falseia – o que não é difícil em enquête de encomenda deste tipo – então seria preciso descobrir a que interesses serve uma tão longa e custosa reportagem. Se ela traduz alguma verdade, então mais do que nunca precisamos com urgência de uma educação que devolva a pais e a estudantes a consciência e o desejo de que eles aprendam algo mais do que "matérias" solitariamente dirigidas ao individuo profissional - algo que os seus computadores podem fazer por eles. Que eles aprendam solidariamente as integrações de "energias" de um saber dirigido à pessoa cidadã. Fiel ao ideário da Organização Mundial do Comércio, a reportagem de VEJA parece em tudo contrária a um documento que em momento algum cita Anísio Teixeira, Florestan Fernandes ou mesmo Paulo Freire. Um documento cuja leitura recomendamos com insistência a pais, a educadores, às pessoas que realizaram a pesquisa e também a quem escreveu a reportagem. Trata-se de um longo relatório encomendado pela UNESCO (a instituição da Organização das Nações Unidas devotada à educação e à cultura) a uma ampla equipe de educadores e de pensadores da pessoa, da sociedade e da educação, nos anos finais do século passado. Este relatório realiza uma ampla avaliação da educação em plano mundial. Depois ele faz recomendações sobre "uma educação para o século XXI". Transformado em livro e traduzido em vários idiomas, em Português ele tomou este nome: Educação, um tesouro a descobrir[2]. Boa parte do que poderia ser considerado um exercício de doutrinação, inclusive a partir de iniciativas de nosso Ministério da Educação, deriva das propostas do relatório da UNESCO. Em seu capítulo central, o bem conhecido "capítulo quatro" o documento estabelece os quatro pilares do aprender. Isto é, do "ser educado". Bem ao contrário do que defende a reportagem de VEJA, eles insistem em que a escola forme pessoas através de um: a) aprender a fazer – mas não apenas por meio do exercício funcional competente de uma profissão e, sim, pela criação de contextos cooperativos de trabalho em comum; b) aprender a aprender, isto é, nunca aprender conteúdos prontos de "matérias" ensinadas, mas aprender a pensar reflexivamente através da construção solidária e crítica de saberes; c) aprender a conviver, ou seja, aprender para saber ser algo bastante além de um simples "bom profissional" ; aprender para ser, em termos defendidos por Paulo Freire há mais de quarenta anos, a ser uma pessoa solidária, criativa e participante dos dilemas de seu mundo de vida e de trabalho; d) aprender a ser. Sim, e para pasmo de quem creia que "isto é coisa do passado", um documento de foro internacional ousa colocar na formação integral do ser da pessoa humana o último e mais essencial pilar do aprender.
Mas talvez não seja sequer necessário recorrer a Educação – um tesouro a descobrir. Pois se voltarmos à página de NOVA ESCOLA, na sessão "para pensar" que em um box acompanha cada um dos quarenta e um educadores, está escrito o seguinte, com que podemos encerrar este diálogo a partir de dois escritos da mesma Editora Abril. Um conceito a que Paulo Freire deu a máxima importância, e que nem sempre é abordado pelos teóricos, é o da coerência. Para ele, não é possível adotar diretrizes pedagógicas de modo conseqüente de serem que elas orientam a prática, até em seus aspectos mais corriqueiros. "As qualidades e virtudes são construídas por nós no esforço que nos impomos para diminuir a distância entre o que dizemos e fazemos", escreveu o educador. "Como, na verdade, posso eu continuar falando no respeito à dignidade do educando se ironizo, s o discrimino, se o inibo com minha arrogância?" Você, professor, tem a preocupação de agir na escola de acordo com os princípios em que acredita? E costuma analisar as próprias atitudes sob este ponto de vista? (NOVA ESCOLA, pg. 112).
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