Para ouvir os sermões
BRUNO GARSCHAGEN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM LISBOA
D epois que estudantes portugueses de Coimbra que defendiam a reinstalação da Inquisição queimaram uma efígie que o representava, o padre Antônio Vieira -que conseguira do papa a suspensão das atividades do Santo Ofício- ironizou em carta datada de 1682: "Não merecia Antônio Vieira aos portugueses, depois de ter padecido tanto por amor da sua pátria e arriscado tantas vezes a vida por ela, que lhe antecipassem as cinzas e lhe fizessem tão honradas exéquias".
No quarto centenário de seu nascimento, que se completa na próxima quarta-feira, dia 6, Vieira teria que trocar o sarcasmo pelo agradecimento: seus compatriotas, agora, celebram não só a efígie como a vida e a obra, dedicando-lhe um ano de comemorações, o Ano Vieirino, cujo ponto alto será o lançamento da edição crítica dos três primeiros dos 15 volumes dos "Sermões". A publicação sairá pela Imprensa Nacional/ Casa da Moeda de Portugal, a princípio sem previsão de chegar ao Brasil.
A obra resgata o português da época e traz um aparato crítico notável. Pela primeira vez desde as primeiras edições, será possível ler os "Sermões" da forma como foram escritos e corrigidos pelo padre.
"Desde lá o texto de Vieira foi sendo modificado de acordo com as mudanças da língua portuguesa, além de muitas traduções erradas do latim. Nossa proposta é publicar o texto autêntico, e fizemos as correções que foram indicadas pelo padre na errata que consta na segunda edição", explica o professor Arnaldo do Espírito Santo, que coordena a equipe de dois professores, Cristina Pimentel e Ana Paula Banza, que recupera a obra original e constrói o aparato crítico. Também há um grupo de professores de outras disciplinas (literatura, história e filosofia) que fazem uma consultoria.
Comemoração
O primeiro dos 15 volumes previstos será lançado nesta semana, inaugurando o "Ano Vieirino", homenagem que se estenderá até o dia 6 de fevereiro de 2009. Nesse período estão programados eventos para destacar a obra de um dos maiores estilistas do idioma.
Os volumes 2 e 3 serão lançados em novembro, durante o Congresso Internacional Ver, Ouvir, Falar. O evento acontecerá na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade de Lisboa, que, juntamente com a Província Portuguesa da Companhia de Jesus, organizam a comemoração.
Haverá ainda seminários, apresentação de peças teatrais, espetáculos de música e exibição de filmes.
A Universidade de Aveiro também festeja a efeméride. Também em novembro, realizará o Congresso Internacional Língua, Identidade, Cidadania e o Festival Internacional de Culturas em Língua Portuguesa. Atualmente, financia o Cruzeiro Histórico Identidade e Cidadania, que vem visitando os lugares percorridos pelo padre entre Portugal e o Brasil.
Um veleiro com uma equipe coordenada pelo professor Abreu Freire iniciou a viagem, partindo de Aveiro, em 17 de março do ano passado. Passou por Cabo Verde, Fernando de Noronha, Salvador, Recife, Ceará, São Luís do Maranhão, Belém do Pará e começou a regressar em 30 de outubro. Durante a maior parte do mês de janeiro, a embarcação ficou parada em Hamilton, nas Bermudas, depois de ter sido tombada por uma tempestade tropical.
A expedição está sendo contada em um diário virtual ( http://wsl.cemed.ua.pt/diariobordo). A chegada a Aveiro será em dezembro e a viagem virará um documentário para a TV portuguesa.
Os 15 volumes dos "Sermões" serão publicados, segundo o cronograma, até 2010. Está previsto também um 16º volume com as introduções, índices e textos do "Índice das Coisas Mais Notáveis", uma visão sistemática da obra escrita pelo padre no fim de cada volume.
Os sermões foram editados entre 1679 e 1748. Na reedição do primeiro volume, o Padre Vieira inseriu uma errata que foi reproduzida nas edições seguintes, mas sem que o texto fosse corrigido. A edição crítica inseriu as correções e retirou mudanças no idioma feitas ao longo do tempo.
Modernização
"As diferenças entre as primeiras edições e as seguintes não foram feitas pelo Padre Vieira, mas por editores que, além de cometerem erros de tradução, modernizaram o português de Vieira", diz Espírito Santo. "As edições posteriores à morte dele trazem as viradas do idioma e mostram como o português de Portugal ficou mais erudito."
Também integrante da equipe, a professora Cristina Pimentel diz que o português de Vieira é o que se falava em Portugal no século 17. "É o que se fala no Brasil até hoje. Palavras como sutil, que depois virou subtil, por exemplo, e no Brasil se manteve sutil."
Essas mudanças foram inseridas e explicadas no aparato crítico. Um glossário no final do volume revela palavras que receberam nova forma ou novo significado: padar (paladar); encontrar (contrariar); defender (proibir); correr à posta (ir depressa); ganância (ganho).
Outro aspecto importante alterado ao longo das edições dos "Sermões", segundo Pimentel, foi o uso da pontuação e das letras maiúsculas. O Padre Vieira, explicou, usava a pontuação para dar o aspecto de oratória, dos discursos falados. O professor Espírito Santo lembra que as alterações transformaram os sermões num texto para ser lido, e não falado, como era originalmente. "E as letras maiúsculas, usadas para realçar certas palavras, foram transformadas em minúsculas."
O trabalho de construção da edição crítica foi desenvolvido numa sala da Universidade Católica Portuguesa, que é depositária de uma parte da Biblioteca da Sociedade Científica de Göerres, com sede na Alemanha. "Pudemos consultar edições semelhantes às que o Padre Vieira usou na época para escrever seus textos", disse o estudioso. "Foi nosso trunfo."
Versões
O autor dos "Sermões", que consultou bibliotecas de Lisboa, Coimbra e Roma, usou várias versões e traduções da Bíblia reunidas em compilações como a "Bibliorum Sacrorum", editada em Londres em 1653.
O livro trazia traduções da Bíblia para o grego, latim e outras línguas. Cada página continha um trecho bíblico. "Essa obra nos permitiu entender como Vieira fazia referências a diferentes edições e versões da Bíblia e conhecer mais o seu perfil intelectual, suas leituras e preferências."
Manuel Cândido Pimentel, professor e presidente da comissão organizadora do Ano Vieirino, diz que a obra será a primeira edição crítica portuguesa dos "Sermões".
Nas universidades, diz Pimentel, o interesse por Vieira continua por causa dos campos múltiplos de análise: retórica, hermenêutica, poética, iconografia, filosofia, teologia, diplomacia, história. A obra desperta ainda tanto interesse, segundo o secretário do Ano Vieirino, Luís Loia, por causa da universalidade de temas.
Mais dois projetos pretendem estimular o estudo e divulgação da obra do autor dos "Sermões": a criação de uma rede internacional de universidades e a publicação, provavelmente no início de 2009, dos textos diplomáticos do Padre Vieira, disse Pimentel.
Um comentário:
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