O historiador François Dosse lança "biografia cruzada" de Deleuze e Guattari, que combateram a noção de sujeito na filosofia
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
D&G, hoje marca cobiçada por fashionistas e outros da mesma espécie, foi, em outros tempos, uma sigla cultuada que designava outra dupla em voga. As letras resumiam os sobrenomes de Gilles Deleuze [1925-95] e Félix Guattari [1930-92], respectivamente filósofo e psiquiatra franceses que, numa série de quatro livros publicados em conjunto, entre 1972 e 1991, abriram um front de enorme sedução no campo das idéias novas e conquistaram uma legião de seguidores.
Mais de uma década depois da desaparição de ambos, o historiador François Dosse retraça a gênese e os desdobramentos do encontro dessas duas forças no volumoso "Gilles Deleuze, Félix Guattari - Biographie Croisée".
Como já anuncia o título, o que o leitor encontra em suas 648 páginas é uma biografia cruzada, gênero híbrido que se distingue da tradicional reconstituição de uma vida célebre, na qual é habitual encontrar estratégias como o recuo a várias gerações familiares, a obsessão pela anedota como recurso de reconstrução de personalidades e sua psicologia forjada a partir de acontecimentos-chave existenciais.
Depois de pôr em questão o velho gênero em "Le Pari Biographique - Écrire une Vie" [A Aposta Biográfica - Escrever uma Vida, La Découverte, 480 págs., 29, R$ 76], Dosse não teme riscos ao eleger por tema dois dos intelectuais que mais combateram, como ilusórias, noções como as de sujeito e de identidade no pensamento e na história ocidentais.
Visão histórica
Portanto, não se deve esperar do esforço de Dosse reconstruções em filigrana das personas de Deleuze e de Guattari como matrizes decifradoras de suas idéias e ideais.
O que o orienta em seu trabalho é uma visão histórica das obras dos dois intelectuais e suas conexões ativas com a época em que seus escritos foram gestados.
Dividido em três partes ("Plis", "Déplis" e "Surplis"), a obra reconstitui suas trajetórias primeiramente como linhas paralelas, depois cruzadas e, finalmente, superpostas.
Nenhum mistério (do tipo "quem escrevia de fato?" ou metáforas que descrevem Guattari como quem abastecia o barco, enquanto Deleuze era o comandante) chega a ser desvendado. Tal opção se justifica tanto pela natureza indecifrável dessa produção a dois quanto pelos valores imanentes às obras que constituíram juntos e separados.
Quando a trajetória de ambos se cruza, em 1969, ainda sob os eflúvios revolucionários do Maio de 68 na França, Deleuze já acumulara um percurso de mais de uma década de estudos, anômalos e desobedientes à tradição, dedicados a autores como Hume, Bergson, Kant, Nietzsche e Espinosa.
Acabava de publicar "Diferença e Repetição" [ed. Graal] e "Lógica do Sentido" [ed. Perspectiva], os dois volumes em que sistematizou sua ontologia fundada no princípio da multiplicidade, em recusa ao primado da identidade que domina a metafísica desde o platonismo.
Guattari, associado à influência de Lacan e do estruturalismo, exercia atividades na clínica de La Borde, instituição que propunha a transformação das relações entre terapeutas e doentes mentais pela adoção de um viés humanista, em ruptura com os moldes do encarceramento e isolamento.
Como produto dessa experiência, Guattari já elaborara, desde 1964, o conceito de transversalidade, um esforço de ultrapassar as oposições binárias que presidiam o modelo psiquiátrico, como saúde/ doença e terapeuta/paciente.
Para além dos muros manicomiais, tal sugestão alavancava a superação de uma estrutura política calcada na combinação sujeitos/assujeitados.
"O Anti-Édipo", livro pioneiro e revolucionário da dupla, elevou a status teórico o conceito de desejo.
A liberação das forças desejantes, promovida pelos "sessentoitistas" em suas várias versões, não se resumia a uma palavra de ordem, segundo a lógica de Deleuze e Guattari. O desejo já era força vital, potência plástica e criação incessante, na releitura que Deleuze produzira das obras de Bergson, Nietzsche e Espinosa.
Inovação
Ao se cruzar com a abordagem psicanalítica trazida por Guattari, o conceito se reconfigura a partir das características de ambivalência e polimorfia, herdadas de Sigmund Freud e retrabalhadas contra o freudismo e sua acepção de desejo como falta. Nas mãos de D&G, o desejo é produção, proliferação, inovação, força que abre as subjetividades e as sociedades para a instauração do novo ou da diferença.
Além de decifrar as proposições de ambos os pensadores com uma clareza válida tanto para iniciantes quanto para iniciados, Dosse insiste na emergência da novidade da teoria que brota do cruzamento de uma trajetória com a outra e, sobretudo, na conveniência da ocasião para a emergência do projeto experimental explícito nas teses de Deleuze e na prática de Guattari.
Ambos buscavam o "fora" como força de expansão (projeto reiterado nos conceitos de "multiplicidades", "heterogênese", "acontecimentos", "agenciamentos coletivos de enunciação" e tantos outros).
Em seu encontro, a fórmula poética de Rimbaud "eu é um outro" se converte em possibilidade de existência e campo de invenção (só comparável, em resultados criativos, aos heterônimos de Fernando Pessoa).
Depois, outros conectores vieram. Dosse explicita, por exemplo, a participação de dois brasileiros em processos equivalentes para ambos os autores: André Parente na gênese de "Imagem-Movimento" e "Imagem-Tempo", para Deleuze, e Suely Rolnik na gênese de "Micropolítica - Cartografias do Desejo", para Guattari.
Nessas e em outras conexões, o "eu é um outro" se constituiu numa variação mais rica do simples "eu e um outro".
GILLES DELEUZE, FÉLIX GUATTARI - BIOGRAPHIE CROISÉE
Autor: François Dosse
Editora: La Découverte
Quanto: 29,50, R$ 78 (648 págs.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário