Muito além da assistência estudantil
A mudança do perfil social das universidades, com a entrada de dezenas de milhares de jovens antes excluídos, exige uma politica ativa de igualdade. Além de habitação e transporte dignos, é preciso assegurar a todos tempo livre para estudo, amplo acesso a livros e a outros bens culturais
Bruno Cava
"Assistência estudantil" é o conjunto de políticas para melhorar as condições de permanência e aproveitamento dos estudantes no ensino. Em um contexto de ampliação geral das medidas de acesso e inclusão na educação superior, tais como o Programa Universidade para Todos (Prouni), os Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (PREs/Reuni) e a adoção de cotas sociais e raciais, a assistência estudantil torna-se como nunca indispensável. De nada adianta a inclusão de alunos de baixa renda, se não houver a paralela garantia de que eles possam participar ativamente da vida universitária e concluir com sucesso os cursos de graduação e pós.
No apagar das luzes do ano passado, o governo federal cumpriu a promessa inicial de repassar verbas adicionais para o cumprimento das metas do Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, que instituiu o Reuni. No dia 28 de dezembro, R$ 250 milhões foram depositados nas contas das 43 instituições do sistema universitário federal (Ifes), para que cada uma possa realizar os seus próprios projetos de expansão e reestruturação. De acordo com o secretário de educação superior, Ronaldo Mota, o crédito "corresponde ao valor inicial de investimento do projeto e possibilitará o início das obras de construção, ampliação da estrutura física e aquisição de equipamentos necessários". Só a UFRJ recebeu R$ 17,2 milhões, o que perfaz 60% do originalmente previsto para 2008.
Em declaração a este colunista, Gustavo Santana, diretor de Combate ao Racismo da UNE, salienta: "Assistimos a um aumento gradativo nos investimentos na educação superior brasileira. A aprovação do Reuni é um importante mecanismo para o fortalecimento dessa política. Tal investimento possibilita uma real efetivação de políticas urgentes de democracia no ensino superior, tais como as cotas raciais. No entanto, a ampliação de vagas deve estar relacionada a uma consistente assistência estudantil, que garanta a permanência e a conclusão do curso".
Cabe agora à União Nacional dos Estudantes (UNE) --- em colaboração com DCEs, CAs e os próprios alunos --- lutar para que parte desse montante seja aplicado diretamente nos universitários, com a assistência estudantil. Aliás, é o que determina o próprio decreto do Reuni, no seu art. 2º IV: "ampliação de políticas de inclusão e assistência estudantil". No ano passado, após intensivo debate, todas as 53 Ifes aderiram ao Reuni. Uma das críticas da Frente de Oposição (FOE), dentro da UNE, era que as promessas ao estudante eram abstratas, inexeqüíveis, "pra inglês ver". Uma UNE de luta, que há um ano inclusive retomou a posse sobre o seu território na Praia do Flamengo, deve atuar com firmeza para que as conquistas da juventude não se tornem folhas de papel.
O "mérito" esconde um desnivelamento brutal entre ricos e pobres. Promover a qualidade do ensino é garantir que todos possam desenvolver-se e ocupar papéis estratégicos na sociedade
Em junho do ano passado, o ministro da educação, Fernando Haddad, já havia se comprometido, diante da direção da UNE, a assegurar no orçamento um item específico para as políticas de apoio ao estudante. Além do incremento quantitativo e qualitativo nas bolsas, a nova rubrica seria orientada para a construção e manutenção de moradias, bandejões, bibliotecas, creches e unidades médicas estudantis, entre outros direitos. Outra reivindicação da UNE é pelo aumento, de 9% para 14%, da parcela das verbas universitárias destinadas à assistência ao estudante. Isso pode ser alcançado por meio de emenda ao projeto de lei da reforma universitária, que tramita no Congresso.
A assistência estudantil nada tem a ver com assistencialismo. Aliás, o próprio nome "assistência estudantil" não faz jus à centralidade dessas iniciativas para a educação superior e a sociedade. Mais do que corporativismo ou de caridade aos alunos de baixa renda,o caso é promover a qualidade de ensino, permitindo que jovens capacitados possam desenvolver-se e ocupar papéis estratégicos na sociedade, o que interessa a todos. Atualmente, o mérito acadêmico embute um desnivelamento brutal entre ricos e pobres, na medida em que os primeiros desfrutam de mais tempo, meios e condições para estudar, enquanto os últimos trabalham fora em "bicos", nunca tiveram acesso pleno a bens culturais e ainda labutam para adquirir livros e materiais ou mesmo arcar com os custos de trasporte e alimentação. Os arautos liberais do mérito abstrato certamente hão de sofrer um "surto de realidade", caso convivessem, por experiência, com o quotidiano e a história de uns e outros.
Com efeito, o ataque à distribuição de bolsas de estudo assume o mesmo caráter demonizador de outras políticas baseadas na transferência de renda, como a bolsa-família. Da mesma forma que a bolsa-família, as bolsas do Prouni e, mais genericamente, a assistência estudantil vêm sendo tachadas pela "direita" e parte da "esquerda"(?) como populistas e clientelistas. No entanto, como expôs Giuseppe Cocco, em artigo neste mesmo site, foi precisamente a massificação das políticas de renda, a partir do governo Lula, que não apenas tirou milhões da pobreza e da improdutividade, como também conferiu as bases econômicas para o expressivo crescimento de produção, consumo e justiça social. Isto é, a política social, fundada na universalização da renda, determinou a política econômica bem-sucedida dos últimos cinco anos, em contraste com o pouco inspirado e fracassado projeto neoliberal, nos anos 90, quando a política social era inteiramente marginal e fragmentada.
Parte da esquerda glorifica a pobreza, como forma primária de redimir a própria culpa como classe-média. É como se os bens materiais e a carne produzissem a "queda do Homem"
Com o aprofundamento do bolsa-família aos jovens de 16 e 17 anos, na medida provisória n.º 411, de dezembro passado, torna-se factível a articulação desse programa de distribuição de renda com a assistência estudantil. Por que não integrar as bolsas universitárias com a bolsa-família? O próximo passo da renda da cidadania é estender ainda mais o bolsa-família, com maiores valores e para jovens de baixa renda de até 24 anos, que estejam cursando a universidade. Assim, não haverá interrupção ou fragmentação da política de renda, contemplando a pessoa do nascimento à conclusão do nível superior, num programa único e universal.
Não à toa, os mesmos inimigos da bio-renda opõem-se às políticas na educação dirigidas à multidão de excluídos: Prouni, Reuni, cotas raciais, reforma universitária. Reunindo-as sob o falso rótulo de "reformas neoliberais do governo federal", o sindicato nacional dos professores (ANDES) e a Frente de Oposição de "Esquerda" (FOE) acabam por assumir uma postura aquém do neoliberalismo, pré-capitalista e pretensamente "pura".
No fundo, parte da esquerda enxerga na glorificação da pobreza a justificação de um mundo culpado pelos males do capitalismo. Em última análise, está em jogo a redenção da própria culpa como classe-média. Nisto, esse tipo de marxismo coincide com o cristianismo ascético, para quem os bens materiais e a carne produziram a queda do homem. Porém Marx apontava nos excluídos não a fraqueza --- mas a potência necessária para reconquistar a riqueza. Não se trata, portanto, de louvar a pobreza contra a riqueza, mas de almejar a riqueza... esta que vem sendo expropriada dos pobres pelos ricos no modo capitalista. As políticas de promoção da renda na universidade exprimem mais um passo dessa guerra justa pela riqueza de todos.
Bruno Cava é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.
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