Arqueólogos esperam autorização do governo para escavar em atração turística
Análises novas de materiais coletados há décadas em Chichén Itzá, perto de Cancún, ajudam cientistas a entender sacrifício humano
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
A ruínas maias de Chichén Itzá, eleitas em 2007 uma das Sete Maravilhas do Mundo do século 21, renderam recentemente uma série de descobertas sobre um dos rituais maias mais curiosos: o sacrifício humano. A fonte desse novo conhecimento, porém, não são trabalhos de escavação no local -hoje mais voltado aos turistas que visitam a vizinha Cancún. O conhecimento novo está vindo de coleções antigas de museus nos EUA e no México.
O local onde as vítimas de sacrifício eram despejadas -o Cenote Sagrado, um enorme poço natural- está fechado para pesquisa há 40 anos, e os arqueólogos esperam agora permissão do governo mexicano para explorá-lo de novo.
Uma análise recente dos ossos de mais de 150 indivíduos retirados do cenote antes de seu fechamento, porém, já serviu para derrubar um mito: o de que o sacrifício maia era um ritual sobretudo para oferecer jovens virgens aos deuses.
"Não era assim", disse à Folha o antropólogo Andrea Cucina, da Universidade Autônoma de Yucatán, de Mérida (México), especialista em ossos. "Na verdade, o que vimos é que há muitas crianças e subadultos cujo sexo não é possível determinar. É muito difícil antes dos 14 ou 15 anos. E, entre os adultos lançados no cenote, dois terços dos que se pode sexar eram homens. Isso muda um pouco a idéia de que eram pobres virgens lançadas lá".
Segundo Cucina, não há tampouco evidências de que todos os corpos jogados no cenote tivessem sido sacrificados ("havia também funerais") nem de que os sacrifícios fossem corriqueiros em Chichén Itzá. Mas isso não quer dizer que o ritual não fosse um bocado macabro.
Coração na mão
"Agora estamos tentando entender como era a prática da extração do coração", conta o antropólogo "Sabemos de outros contextos fora de Chichén que a via de acesso mais simples e rápida era abrir o abdome bem abaixo da caixa torácica, e a faca não entrava em contato com nenhum osso. Abrindo o diafragma e inserindo a mão, alguém com experiência conseguia agarrar o coração, puxá-lo para baixo e cortar ligamentos e vasos para soltá-lo, mas mantendo o coração pulsante nas mãos".
Os métodos de sacrifício deviam variar de acordo com o contexto do ritual e o perfil da vítima. Um dos desafios hoje é saber quem eram as vítimas.
"Os sacrifícios de crianças eram aqueles voltados a Chaac, deus da chuva", diz Cucina. Há evidências também de que algumas das vítimas vinham de equipes perdedoras do famoso jogo de bola ritual maia.
A descoberta mais recente foi feita pela equipe do americano Dean Arnold, do Wheaton College, de Illinois, e publicada no mês passado na revista "Antiquity". Estudando potes recolhidos há um século do Cenote Sagrado e depositados em museus dos EUA, ele descobriu a composição do "azul maia", tinta que era usada para pintar murais e esculturas e até corpos de vítimas dos sacrifícios.
"Sabemos que o cenote era a residência do deus Chaac, e sabemos que o azul é associado à chuva", diz Arnold. "Como esse era um pigmento muito incomum e resistente, químicos e cientistas de materiais tinham interesse em tentar descobrir como ele era feito." O azul maia, afinal, era uma mistura de folhas de índigo com paligorsquita (uma argila) e copal (uma resina de árvore).
Como nossos ancestrais
Diversas outras descobertas podem sair de Chichén Itzá, diz Cucina, sobretudo se o governo mexicano liberar o cenote para pesquisa, o que os arqueólogos esperam que ocorra neste ano. Por enquanto, esqueletos disponíveis para pesquisa são pilhas de ossos desconexos tirados do poço sem controle, como fez em 1904 o então cônsul americano Edward Thompson, dono da "Fazenda Chichén". Em 1962, um arqueólogo chegou a usar uma draga para tirar ossos de lá, destruindo o precioso contexto arqueológico.
Michael Coe, arqueólogo da Universidade Yale -provavelmente a maior autoridade viva em maias- diz crer que incursões futuras confirmarão escritos como os de Diego de Landa, frade que viveu em Yucatán no século 16 e relatou sacrifícios. Alguns historiadores questionam a confiabilidade de relatos de padres no México colonial, já que a Coroa Espanhola tinha intenção de pintá-los como bárbaros assassinos para justificar o genocídio dos índios.
"Mas não acho que Landa estivesse tentando demonizar os maias; nós sabemos que eles sacrificavam pessoas em todos os lugares", diz Coe. "A idéia era ter nobres, como reis de estados inimigos, capturar essas pessoas, mantê-las presas por algum tempo e então sacrificá-las, normalmente por decapitação. Eles praticavam isso, sim, assim como os nossos ancestrais europeus".
Turismo trava arqueologia, diz cientista
Para o especialista Michael Coe, trabalhos nas ruínas de Chichén Itzá priorizaram restauração e ignoraram pesquisa
Arqueólogo diz que cidadela é "um dos sítios grandes mais mal conhecidos de toda a área maia" apesar de ser explorado há tempos
Rafael Garcia/Folha Imagem
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Camelô vende mercadoria dentro das ruínas de Chichén Itzá
DA REPORTAGEM LOCAL
Poucas pessoas no mundo conhecem a área maia tão bem quanto o arqueólogo americano Michael Coe, 78. O cientista, que trabalhou em diversas escavações na região, é um dos acadêmicos que hoje se voltam a construir um panorama geral sobre a civilização maia.
Aposentado pela Universidade Yale, Coe diz que ainda viaja "quatro a cinco vezes por ano", para a região, mas não costuma ir para Chichén Itzá "por causa do excesso de turistas". Mais do que um estorvo para quem passeia, porém, a multidão de visitantes atrapalha a arqueologia, diz. Leia trecho da entrevista que Coe concedeu à Folha por telefone. (RAFAEL GARCIA)
FOLHA - Há muito debate hoje sobre as razões por trás do colapso da cultura maia clássica. Os motivos foram mais políticos ou ecológicos?
MICHAEL COE - Provavelmente havia vários fatores presentes ao mesmo tempo num período em torno de 800 d.C. Acho que essas coisas ocorreram com os maias mais ou menos ao mesmo tempo. Sabemos que houve um tremendo colapso ambiental nessa época. A população ficou grande demais, e a terra simplesmente não conseguia suportar. O colapso da agricultura maia está bem claro hoje. Além disso, tem a estiagem.
Há evidências de que houve uma série de secas devastadoras mais ou menos ao mesmo tempo. Imagine o que é um período grande de estiagens quando há muitas pessoas para sustentar: há fome em massa.
Havia também problemas sociais e políticos ocorrendo, e um deles era a disseminação de guerras, provavelmente relacionada a tudo: eles estavam brigando por terras. Esses centros eram todos cidades-estados independentes e sempre haviam guerreado, mas nunca a ponto de destruir as culturas.
E por fim havia pessoas vindo do oeste. Eram os "bárbaros" deles, pessoas que não eram maias, falavam línguas nahuatl de vários tipos, e tomavam a área maia. Eles devem ter perturbado toda a rede de comércio que existia. Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo.
FOLHA - Qual o estado atual da decifração das inscrições maias? Ainda há muito trabalho a ser feito?
COE - Eu não sou um super-especialista, mas se você falar com os especialistas de verdade, eles dirão a você que provavelmente 90% a 95% de todos os escritos que nós temos dos maias, dentre milhares de textos que temos, podem ser lidos hoje. Hoje sabemos a gramática com mais detalhes e sabemos até em qual língua maia os textos foram escritos. Havia uma língua de prestígio que eles usavam nos hieroglifos, como o latim na Igreja Católica ou o sânscrito na Índia.
FOLHA - Línguas maias modernas ainda correm risco de sumir?
COE - É preciso levar em conta que há hoje cerca de 6 milhões de pessoas identificáveis como maias, falando línguas maias, especialmente na Guatemala e em Chiapas. Elas são a parte da população que cresce mais rápido. Não acho mesmo que elas vão desaparecer. Houve um período durante o governo militar na Guatemala em que essas populações eram alvos do que se podia chamar de um programa genocida. Tecnicamente, era etnocídio, a tentativa de eliminar a cultura, que também incluía genocídio. Mas acabou.
FOLHA - Como o sr. encara o problema do turismo em Chichén Itzá?
COE - Chichén Itzá é um dos sítios grandes mais mal conhecidos de toda a área maia, se você considerar que as pessoas estão trabalhando lá há tanto tempo. A Instituição Carnegie, de Washington, se estabeleceu lá na época da Primeira Guerra Mundial e conduziu um grande programa por cerca de 70 anos. Muito pouco do que foi feito revelou coisas sobre o local. Eles não estavam muito interessados em estratigrafia e em mudanças nas cerâmicas.
Os mexicanos também têm um grande programa lá, mas por anos nada realmente apareceu em termos de entender a seqüência cultural ou que tipo de lugar era aquele. A razão disso é que Chichén Itzá se tornou um grande sítio turístico, onde a reconstrução era mais importante do qualquer outra coisa, para que os turistas tivessem algo para fotografar e escalar. Isso atrasou tudo em muitos anos. Acho que agora estão fazendo bom trabalho em Chichén, mas são coisas que ainda não foram publicadas.
FOLHA - O sr. ainda viaja para lá?
COE - Estive na Guatemala no mês passado. Vou várias vezes por ano a todos esses lugares. Não necessariamente vou a Chichén, por causa do excesso de turistas mesmo.
FOLHA - É verdade que Chichén tem relação com sua decisão de se tornar arqueólogo?
COE - Eu tinha um mestrado em literatura inglesa, queria ser escritor, e passei em Harvard, mas no meu segundo ano tive a chance de visitar um sítio maia, que foi justamente Chichén Itzá. Quando voltei após aquelas férias eu decidi que era isso que eu queria fazer.
FOLHA - O sr. está escrevendo algum novo livro agora?
COE - Estou fazendo um livro com um colega próximo, que foi meu estudante, sobre as origens da civilização Maia. E todos os meus livros anteriores têm de ser reeditados por que há uma grande competição entre livros nessa área. Tenho que cuidar de "The Maya", que está na sétima edição. Dá um bocado de trabalho atualizar tudo.
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