Tema do novo filme de Andrzej Wajda, o assassinato de 20 mil poloneses por Stálin foi objeto de interesses político-ideológicos
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em abril de 1943, no curso da Segunda Guerra, quando ocupava a Polônia e parte da União Soviética, o Exército alemão encontrou na floresta de Katyn, em território russo, uma fossa de grandes proporções. Nela, haviam sido lançados os corpos de mais de 20 mil poloneses.
Era mais um massacre entre os muitos perpetrados durante o conflito, mas este tinha características específicas: os autores da chacina não tinham sido os nazistas, e, sim, os comunistas russos
O ministro de Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels, tratou de explorar a fundo a descoberta macabra, como exemplo do que se transformaria o mundo se os soviéticos ganhassem a guerra, martelando o tema no rádio, nos jornais e em cartazes distribuídos em países da Europa.
As vítimas do massacre, praticado em abril de 1940, eram, em sua maioria, oficiais do Exército polonês -um grande contingente composto não só de oficiais de carreira como de engenheiros, advogados, professores universitários, jornalistas, convocados para combater a invasão do leste da Polônia pela União Soviética, em setembro de 1939, e capturados pelos russos, como prisioneiros de guerra.
As mortes foram consumadas metodicamente, em regra com um tiro na nuca, disparado por pistolas de marca alemã, o que pode indicar o propósito de falsear a autoria dos assassinatos. Como se comprovou fartamente bem mais tarde, o massacre contou com a chancela de Stálin, por proposta de Laurent Beria, ministro do Interior e chefe da polícia secreta soviética, a NKVD.
A operação teve por objetivo liqüidar uma parte expressiva da elite polonesa, na certeza de que aquele país, cujos conflitos com a Rússia ocorriam ao longo da história, ficaria alijada de seus setores sociais mais ativos, na eventual luta por uma Polônia independente.
Naquele mesmo ano de 1943, quando a fossa foi encontrada, as forças soviéticas recuperaram a região onde se situa Katyn e desarmaram a arma propagandística de Goebbels -neste caso, verdadeira-, montando uma operação para denunciar os alemães como responsáveis por mais um massacre dentre tantos outros por eles praticados.
Essa manipulação contou com o beneplácito da Inglaterra e dos EUA, ambos aliados da União Soviética na luta contra o nazifascismo. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill assegurou aos soviéticos que iria se opor vigorosamente a qualquer investigação em território alemão por parte da Cruz Vermelha Internacional, pois ela resultaria em uma fraude e suas conclusões beirariam o terrorismo.
Nos EUA, em 1944, o presidente Franklin Roosevelt solicitou a um comandante da Marinha, George Earle, seu emissário nos Balcãs, uma investigação sobre o caso.
Quando Earle concluiu que os soviéticos eram, de fato, os responsáveis pelo massacre, Roosevelt suprimiu o relatório, embora dizendo-se convencido, entre quatro paredes, de que os culpados eram os alemães (a respeito de todo o episódio, o leitor poderá consultar o bem documentado texto "Katyn Massacre" em http://en.wikipedia.org/wiki/Katyn_massacre).
No mundo ocidental, o reconhecimento de que o massacre de Katyn foi um crime do stalinismo se deu no contexto da Guerra Fria, a partir de revelações no Congresso dos EUA. Mas, no Leste Europeu, a verdade durou muito tempo para chegar aos olhos do grande público. Na Polônia comunista, Katyn foi um episódio borrado da história, na medida em que qualquer referência a ele correria o risco de abrir uma perigosa controvérsia.
Na União Soviética, o reconhecimento da responsabilidade dos então dirigentes do país só ocorreu em 1990, no governo de Gorbatchev, mas, mesmo assim, com ressalvas.
O massacre não foi reconhecido como genocídio ou crime de guerra e nunca se desvendou quem foram seus responsáveis diretos. Hoje, há uma extensa bibliografia sobre o episódio e o veterano cineasta polonês Andrzej Wajda a ele dedicou um filme, com o título singelo e expressivo de "Katyn" (2007).
O tema o toca diretamente, pois seu pai foi um dos oficiais poloneses vítimas do massacre.
O filme foi lançado na Polônia em uma cerimônia que contou com a presença de intelectuais e de muitas autoridades, tendo grande repercussão popular.
O massacre de Katyn é um duro e excelente exemplo de como visões maniqueístas dificultam a compreensão histórica. Convém, porém, não confundir visões maniqueístas com um aparente objetivismo, em que o historiador se situaria como observador neutro, diante dos acontecimentos históricos. A Segunda Guerra pôs frente a frente duas forças, num combate literalmente mortal não apenas pelo número de mortos, na maioria civis, como pelo fato de que a vitória do nazifascismo representaria a morte da civilização.
Mas, ao mesmo tempo, episódios como os de Katyn revelam que os países democráticos não estavam isentos de perpetrar atos condenáveis. Pecados maiores, como o bombardeio de Dresden, a bomba de Hiroshima e pecados comparativamente menores, como seu comportamento no caso de Katyn, tratando de encobrir o crime soviético, em nome da realpolitik.
BORIS FAUSTO , historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).
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